Em Nardja Zulpério, Regina Casé pisa o palco sozinha numa corrida maluca e faz o público rolar de rir
Não é só a paisagem que se recupera no Rio de Janeiro. Com a estréia de Nardja Zulpério – monólogo escrito por Hamilton Vaz Pereira e estrelado pela atriz Regina Casé -, o humor, uma das marcas registradas da cidade, volta a viver seus melhores momentos no cenário teatral. Desde a revelação, em meados da década de 70, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone e de alguns raros espetáculos do gênero besteirol, não se via nos palcos cariocas algo que unisse qualidade com humor em quantidades generosas. O público ri e sofre com as aflições de Nardja e, principalmente, estabelece um pacto de cumplicidade com Regina Casé, que sai desse primeiro trabalho solo consolidada como a melhor humorista brasileira.
A estrutura de Nardja Zulpério não é simples e a peça poderia resultar numa confusão monumental não fosse Regina a atriz. Identificada com o universo de Hamilton – foi casada com ele e os dois trabalharam juntos no Asdrúbal -, ela traduz o autor para o público, interpretando duas personagens hilariantes. Uma delas é Nardja, uma atriz comprometida com vários trabalhos profissionais ao mesmo tempo e que se especializou tanto em mitologia grega quanto no filósofo alemão Nietzsche. A outra é Psiquê, a mulher de Eros na mitologia grega, que a atriz Nardja interpreta num teste para um comercial de televisão.
A peça começa com Nardja – esse nome estapafúdio, segundo Hamilton, é decorrente de um capricho dos pais da personagem, uma camareira e um fotógrafo lambe-lambe – chegando em casa depois de um dia especialmente duro. O espectador acompanha a noite e a madrugada da atriz antes de retornar o batente. Nesse intervalo que deveria ser dedicado ao descanso, Nardja responde aos recados da secretária eletrônica, resolve problemas práticos da casa e prepara os trabalhos prometidos para o dia seguinte. A lista de tarefas poderia constar da agenda de todos os personagens da antiga TV Pirata ao mesmo tempo: escrever a letra para uma música do ex-marido, que mora em Los Angeles e terá sua grande chance como cantor naquele dia, preparar uma participacão especial numa peça em Belo Horizonte, ensaiar para um teste para o comercial no qual concorre ao papel de Psiquê e fazer uma adaptação para o teatro da obra de Nietzsche “Assim Falou Zaratustra”.
INVEJA DE AFRODITE – Cumprir essa corrida maluca após um dia de trabalho é, sem dúvida nenhuma, dose para leão – e assistir a um monólogo no qual alguém passa o tempo todo às voltas com tal maratona poderia resultar numa verdadeira tortura teatral. Ocorre o oposto. Regina tem muitos momentos brilhantes, como na cena em que conta didaticamente para a platéia o mito de Psiquê. Começa falando sobre a beleza da mortal que provocou a inveja de Afrodite. Para ser mais explícita em relação aos seus dotes físicos, ela resolve “fazer cara de bonita” e ainda ensina às pessoas como imitá-la. O resultado é impagável.
O melhor de sua interpretação, contudo, vai além do histrionismo de caras e bocas. A maneira de uma personagem de Pirandello, Nardja conversa com o público e faz críticas até ao texto que interpreta. Lembrando que a crítica paulista – a peça esteve em cartaz em São Paulo, numa pequena casa noturna – chegou a apontar partes da peça que deveriam ser suprimidas, ela avisa a certa altura: “Sabe qual é o pedaço que a crítica achou pior? É exatamente esse a que vocês vão assistir agora”. Para aumentar a confusão, Regina convoca a platéia para um debate em que se decidirá se o tal trecho deve ser cortado ou não – e leva pelo menos uns dez minutos divertindo o público com a proposta
Através de monitores de vídeo, ela ainda contracena com coadjuvantes especiais, como Fernanda Montenegro, no papel de Afrodite, e Luís Fernando Guimarães, como o ex-marido Felipe. Regina atribui o resultado bem-sucedido ao fato de ter um texto capaz de amarrar suas estripulias no palco. “Jamais poderia fazer um show de humor desses na base da pura improvisação. Seria um fracasso”, diz. O contrário também é verdadeiro – ou seja, o texto não existiria sem ela. O sucesso e Nardja Zulpério se alicerça numa virtude que, na era dos efeitos cênicos mirabolantes, andava meio sumida dos palcos: o brilho de uma atriz talentosa.